Há décadas o mundo se habituou a associar a bactéria Neisseria meningitidis a casos de meningite pelos sorogrupos A, B e C. Porém, um recente estudo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) da Fiocruz, em parceria com o Instituto Estadual de Infectologia São Sebastião, mostrou que um sorogrupo, chamado W135, antes quase inexpressivo, tem sido responsável por um crescente número de casos no Rio de Janeiro. Publicada na última edição das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, a pesquisa mostrou que o novo sorogrupo de importância epidemiológica já foi responsável por pelo menos um surto de meningite na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, em 2004, e que tem capacidade para causar, além da meningite, a septicemia, forma mais grave de infecção invasiva pela bactéria.
Os diversos sorogrupos de N. meningitidis correspondem a cada uma das 12 possíveis estruturas conhecidas para a cápsula das células bacterianas, compostas por polissacarídeos. Até o fim da década de 1990, 90% dos casos ocorridos no mundo eram creditados aos sorogrupos A, B e C, enquanto o tipo W135 era considerado raro ou esporádico. Contudo, a situação mudou por volta do ano 2000, quando foi registrado o primeiro surto relacionado ao W135, iniciado na Arábia Saudita e propagado para o norte da África.
No Rio de Janeiro, conforme revelou o estudo liderado pelo médico infectologista David Barroso, pesquisador do Laboratório de Enterovírus do IOC, o número de isolamentos do sorogrupo, que representava apenas 0,3% dos casos entre 1988 e 2002, aumentou bastante e, segundo dados computados desde 2002, já ultrapassa a marca de 10% dos casos notificados da doença. O pesquisador também revelou a ocorrência de pelo menos um surto localizado, registrado em 2004, no município de Nova Iguaçu, vizinho à cidade do Rio de Janeiro.
O motivo desse repentino aumento de expressividade do sorogrupo ainda é um mistério. “Na verdade, diversos fatores podem estar envolvidos com a multiplicação de casos do grupo W135”, acredita Barroso. “Clima, viagens internacionais, indicadores socioeconômicos, qualidade de vida, de moradia, tabagismo, infecções virais concomitantes e outros aspectos relacionados tanto ao potencial patogênico de um sorogrupo quanto à de suscetibilidade da população àquele grupo podem ter influenciado esses números”.
O médico não acredita que possa acontecer uma epidemia do novo sorogrupo na cidade, mas não descarta a possibilidade de surtos localizados e casos associados. “Fora da África não há uma grande epidemia há mais de vinte anos e sua manifestação atual se dá, em geral, de maneira endêmica, hiperendêmica ou epidêmica, sem ultrapassar 20 casos por 100 mil habitantes”, explica. “Por isso, é muito mais provável que o sorogrupo W135 continue a aparecer, mas na forma de doença endêmica e de casos associados no espaço-tempo”.
O pesquisador também levanta o debate sobre qual tipo de vacina contra a bactéria N. meningitidis deve ser adotada no Brasil. “O ideal seria que cada região adotasse a estratégia de imunização que melhor atendesse à sua realidade”, acredita. Na opinião do médico, a vacina mais adequada para ser utilizada no Rio de Janeiro, por exemplo, onde os tipos mais comuns são B, C e W135, seria a tetravalente - que previne os dois últimos, além dos sorogrupos A e Y -, que ainda não é produzida no Brasil. “Em outros lugares em que o sorogrupo W135 não fosse tão relevante, poderiam ser utilizadas outras vacinas”, explica. Cabe lembrar que não existe nenhuma vacina aprovada sem restrições contra o sorogrupo B, devido à especificidade das proteínas presentes em suas membranas e à ausência de uma proteção grupo específica.
Segundo o médico, além da vacinação, os cuidados necessários para prevenir a doença envolvem a quimioprofilaxia – tratamento com antibióticos de todas as pessoas que tiveram contato próximo com o doente – e uma grande dose de informação. “Na verdade, é praticamente impossível impedir a transmissão da bactéria”, explica o especialista, “porque na maioria das pessoas ela provoca apenas uma infecção assintomática na nasofaringe, que pode durar meses ou mais de um ano, mas que não traz prejuízo à saúde, induz imunidade e transforma o portador em uma fonte de contaminação. Para cada pessoa doente, há muitas outras pessoas infectadas transmitindo a bactéria, apesar de não apresentarem sintomas e nunca chegarem a desenvolver a doença”, esclarece. “Para se ter uma idéia, estima-se que cerca de 10% da população carioca está constantemente infectada”.
Segundo Barroso, a situação se agrava devido à desinformação da população e até da comunidade médica sobre a doença meningocócica. Segundo ele, há muito alarde em relação à meningite, mas as doenças causadas por N. meningitidis muitas vezes são confundidas com outros quadros infecciosos, com as quais têm sintomas em comum. “As pessoas têm que entender que só uma pequena parcela da população adoece e também têm que conhecer os sintomas, para poder procurar assistência médica rapidamente em caso de suspeita”, explica o médico.
O estudo realizado por Barroso também mostra que, assim como os sorogrupos A, B e C, o W135 tem um potencial patogênico completo – ou seja, é capaz de gerar todas as formas clínicas associadas a essa bactéria. Dentre elas, a meningite é apenas a forma menos grave, embora a mais freqüente. A septicemia é uma doença muito mais agressiva (a taxa de letalidade está entre 30% e 80% dos doentes, contra cerca de 3% dos que desenvolvem apenas meningite, sem púrpura). Ele acredita que o reconhecimento da manifestação cutânea, como petéquias e manchas equimóticas, primeiro sinal clássico da doença meningocócica a surgir, em geral nas primeiras 48 horas após o início dos sintomas, deveria ser a mensagem central das campanhas públicas de educação.
Apesar de sua gravidade, pela falta de informação muitas vezes a septicemia acaba sendo confundida com casos de dengue hemorrágico na região. “Na dengue, eventualmente, aparecem manchas pelo corpo após quatro dias de outros sintomas, mas na meningococcemia essas manchas aparecem 24 horas depois dos primeiros sintomas, com uma evolução rapidamente progressiva e sem precedentes”, explica o médico. O procedimento mais seguro a ser tomado, segundo ele, é sempre o tratamento da doença com maior potencial fatal, quando o tratamento específico não é imediatamente iniciado. “O diagnóstico da dengue é feito por exclusão e o único tratamento, a hidratação, também ajuda contra a septicemia”, argumenta.
“O melhor é aplicar logo antibióticos, que não vão interferir no tratamento da dengue caso seja descartada a outra hipótese, o que poderá acontecer em algumas horas”. Segundo Barroso, desconfiar de sintomas inespecíficos (como diarréia), que podem anteceder o aparecimento das manchas e, por isso, orientar o paciente de forma correta sobre sinais de gravidade que o levem à imediata busca de socorro médico também é fundamental no tratamento da doença.
Fonte: Fiocruz