quarta-feira, 25 de julho de 2007

Consolidação dos Conselhos Municipais de Saúde depende de superação dos desafios

A pesquisa Monitoramento e apoio à gestão participativa do SUS, financiada pela Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde e realizada por um grupo de pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz, mostrou que a maioria dos Conselhos Municipais de Saúde funciona com dificuldade (70%) ou de forma incipiente (17%), apenas 1% dos Conselhos atinge o patamar de pleno funcionamento estabelecido na 12ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) e pouco mais de 10% funcionam bem. Para comentar esse resultado, o Informe Ensp conversou com o pesquisador Marcelo Rasga Moreira, coordenador, com Sarah Escorel, do estudo. Ele aproveitou para tratar de importantes questões relacionadas à retomada da participação popular e ao fortalecimento do controle social e adiantar o lançamento da versão definitiva do site ParticipaNet SUS.

Moreira: temos que superar os problemas estruturais, de organização e orçamento que impedem o pleno funcionamento dos Conselhos (Foto: Luis Seito)

Os resultados da pesquisa sobre os Conselhos Municipais de Saúde (CMS) causam, em princípio, um certo desânimo. Essa primeira impressão é verdadeira? A situação é tão ruim quanto parece?

Marcelo Rasga Moreira: O quadro aparentemente não é favorável, mas quando analisamos detalhadamente a situação, ela acaba não sendo tão alarmante. Em primeiro lugar, devemos considerar que os CMS passaram pela chamada etapa de implementação, que vai desde 1990, com a Lei 8.142, que regulamenta os Conselhos de Saúde, até o marco simbólico de 2005, quando é criado o CMS de Cedral, no Maranhão, e se completa 100% dos municípios com Conselho. Nesse período, o número de municípios aumentou mais de 22%, passando de menos de 4.500 para mais de 5.500, muitos deles criados segundo critérios predominantemente políticos, sem participação da sociedade civil organizada e completamente dependente de recursos federais. Além disso, os anos 90 foram marcados, pelo menos na área da saúde, por uma disputa de reformas: a Reforma Sanitária, com o ideário da 8ª Conferência e a crença num Estado forte, voltado para a defesa dos interesses dos cidadãos, e, num plano político maior, a reforma administrativa de cunho neoliberal, que começa no governo Collor e se fortalece nas duas gestões de FHC. Fora isso, é um período de redemocratização do país, após o tempo da ditadura. Apesar de tudo isso, conseguimos criar uma imensa rede de CMS na qual alguns funcionam bem, outros funcionam mal e outros simplesmente não funcionam, mas estão todos criados.

Então, numa visão histórica, o quadro seria bastante positivo?

Moreira: Bem, hoje, nós temos em torno de 76 mil conselheiros municipais de saúde, sendo que 50% deles representam os usuários. Isto é um fato sem precedentes na nossa história política. Os atuais conselhos de saúde, que estão inseridos no contexto dos conselhos gestores de políticas públicas, são instâncias políticas inovadoras e muito diferentes daquelas que o Brasil está acostumado. Numa visão histórica, devemos lembrar que nenhuma das instituições políticas hoje consagradas conseguiu se consolidar em 15 ou 20 anos. Isso é muito difícil, sobretudo quando se trata de uma instância que tem a grande função de partilhar poder.

Que tipo de impacto isso traz?

Moreira: Uma das principais atribuições dos Conselhos de Saúde é trazer os usuários do SUS e a sociedade civil organizada para a discussão institucionalizada do ciclo de políticas de saúde do seu município. Isso faz com que prefeitos, muitas vezes eleitos com milhares ou até milhões de votos e que, de certa forma, consideram que recebem da população um "cheque em branco" para governar, tenham que debater com os conselheiros e prestar contas ao Conselho, pelo menos no que diz respeito às políticas de saúde. São instituições da democracia representativa tendo que se aproximar de instâncias da democracia participativa para elaborar e implementar políticas, ou seja, um complexo "processo de encaixe" que não consegue ser imediatamente consolidado e que depende, também, da superação de alguns aspectos históricos do país: clientelismo, nepotismo e falta de cultura participativa, entre outros. Eu costumo dizer que nós ainda não batemos o nosso recorde de persistência democrática: se contarmos a partir da constituição de 1988 ainda não ultrapassamos, em número de anos, o período de 1945 a 1964. Somos uma "redemocracia" muito nova e, por isso, eu não encaro o cenário dos Conselhos Municipais de Saúde como desanimador, mas como altamente desafiador e possibilitador.

E quais são os principais desafios?

Moreira: Num primeiro momento, superar os problemas estruturais, de organização e orçamento que impedem o pleno funcionamento dos Conselhos, o que acreditamos ser possível resolver com certa facilidade, tendo em vista que o Ministério da Saúde está sensibilizado para, com práticas de gestão participativa e de aproximação às prefeituras, apoiar os CMS. Ao mesmo tempo, é preciso aprimorar as práticas de participação social e fortalecer o controle social, desafios que estão, por um lado, diretamente relacionados à questão da "educação permanente" dos conselheiros, os quais, durante a pesquisa, apontaram a capacitação como fundamental para a compreensão e o exercício das funções do conselho, em especial o controle social. Por outro lado, é preciso que haja um movimento de aproximação mútua entre os conselhos de saúde e outras instituições públicas que também têm como atribuição fiscalizar o poder público – Tribunal de Contas da União (TCU), Ministério Público (MP), Senado e Câmara, entre outras – e que têm, além disso, atribuições legais, recursos e expertise para serem parceiros na formação de uma rede de controle. Rede esse que, além de tudo, permitiria que os conselheiros dedicassem mais tempo à participação no ciclo de políticas, em especial na formulação e no acompanhamento da implementação.

O senhor poderia explicar melhor essa idéia de rede de controle?

Moreira: Na pesquisa, constatamos que há Conselhos que, em suas reuniões, discutem, ainda que de forma "epidérmica", questões como a do superfaturamento nas compras de ambulância, que tanto espaço ganhou na mídia. O problema é que, para produzir resultados como a descoberta de fraude, o que muitas vezes se cobra dos conselhos, os conselheiros seriam forçados a agir como detetives, tendo que descobrir no orçamento onde está o furo, onde está o desvio de verba, onde houve favorecimento nas licitações... E eles não têm condições de fazer isto. A pesquisa, no entanto, identificou 18 instituições – que chamamos de "atores-chave" – cuja função é fiscalizar o uso dos recursos públicos. Nós defendemos que é fundamental mobilizar essas (e outras) instituições e estreitar a relação dos conselhos com elas. Nesse sentido, caberia aos conselhos identificar e encaminhar o problema à instituição competente, monitorar o processo de apuração e receber pareceres técnicos para que possam deliberar sobre o assunto, sem esquecer de comunicar à sociedade os resultados.

O agir em rede com essas instituições pode trazer um grande incremento à ação dos conselhos, ainda mais porque todas aquelas que foram identificadas pela pesquisa já possuem estratégias e ações para se aproximarem da sociedade, embora estas ainda sejam esparsas, não-articuladas e pouco utilizadas.

Como pensar um processo de capacitação ou de "educação continuada" para um grupo que está sempre mudando?

Moreira: O Conselho Nacional de Saúde aprovou, em 2005, a Política Nacional de Educação Permanente para Controle Social no SUS, numa tentativa de superar esse problema e atender essa demanda. O importante é pensar a educação continuada de forma institucionalizada, ou seja, como algo que permaneça nos Conselhos, independentemente dos conselheiros que lá estejam. Além disso, também é preciso inserir a sociedade civil organizada nesse processo, por meio, por exemplo, das associações de moradores e dos sindicatos, duas das principais representações da sociedade civil nos Conselhos. A Central Única dos Trabalhadores (CUT), por exemplo, participa, como instituição, em vários Conselhos e sindicatos filiados à CUT em outros tantos. Então, é possível transformar esses atores dispersos em atores coletivos, a partir de um processo de capacitação e educação continuada que vai interferir diretamente na qualidade do trabalho dos conselheiros. A educação permanente é um recurso indispensável para a conquista da autonomia dos Conselhos. Os conselheiros devem ter clareza das atribuições do Conselho e de suas possibilidades de atuarem em rede com instituições que podem ser acionados quando o poder público falha no cumprimento de suas obrigações. A idéia é que capacitar individualmente os conselheiros, apesar de importante, pois eles atuam como disseminadores, deve ser expandida para a qualificação da atuação dos Conselhos, que passariam a contar com ferramentas e instrumentos permanentes, a serem aproveitadas independente da saída dos conselheiros.

É possível que o atual descrédito da população nas instâncias da democracia representativa ajude a fortalecer os conselhos gestores, instâncias de democracia participativa?

Moreira: Um dos problemas mais graves é que boa parte da população não vê mais a política como um instrumento que pode melhorar suas condições de vida. A idéia corrente é que essa melhoria deve ser resultante de decisões e ações individuais, o que estimula competições viscerais em todos os níveis da vida e atrapalha qualquer forma de democracia. Por outro lado, são as situações difíceis que trazem oportunidades de superação. Se vamos aproveitar ou não essas oportunidades, aí é outra história. Podemos conseguir grandes avanços, mas é preciso que haja, por parte do poder público, da sociedade organizada e da academia, entre outros, um certo nível de organização, de gestão participativa, de mobilização e de comprometimento. Não podemos esquecer que toda essa idéia de participação e controle social aflora num momento de ausência completa de democracia, quando pensar nisso chegava a ser uma ameaça à vida.

Quem são os conselheiros de saúde? A classe média, cujo afastamento colaborou para a deterioração dos serviços públicos, participa dos Conselhos?

Moreira: A pesquisa não trabalhou com a identificação de conselheiros, mas das entidades que representam cada segmento da sociedade. No caso dos usuários, o grupo mais participante é o das associações de moradores, seguido dos sindicatos, das entidades religiosas e das associações de portadores de doenças crônicas. No caso da classe média, ela é representada principalmente no segmento dos trabalhadores de saúde e dos prestadores de serviços, mas nada impede que os representantes das associações de moradores e dos sindicatos sejam oriundos dessa camada social, cuja participação é importante na medida em que ela tem alta capacidade e mais espaços formalizados de pressão sobre o poder público. É muito importante que se redescubra o "público" no Brasil, principalmente nas áreas da saúde e da educação, e que essa redescoberta sirva como instrumento de pressão e vocalização das demandas sociais perante os gestores. Precisamos resgatar a participação da população. Existem conselhos gestores em várias as áreas – saúde, educação, ambiente, infância e adolescência – e trabalhar esses conselhos no âmbito da reforma política é algo essencial.

No caso do SUS, por exemplo, há uma proposta no Ministério para a criação das fundações públicas de direito privado e um dos principais pontos dessa proposta, que considero positiva para o SUS, está na regulação, no controle sobre os contratos, os objetivos, as metas, os resultados que estas fundações devem obter. Os Conselhos de Saúde atuam sobre estes pontos e, portanto, deveriam ser chamados, incentivados e apoiados a participar dessa regulação. Acredito que o MS vai fazer isso, por sua atual trajetória e porque vivemos um momento político no qual a participação social é cada vez mais necessária e deve ser estimulada, e os Conselhos são um espaço privilegiado para isso.

De que maneira a população pode se aproximar dos Conselhos?

Moreira: A participação do cidadão, como indivíduo, ocorre nas reuniões mensais do CMS, que são abertas à população, que, na maioria dos CMS, tem direito à voz. Para participar como conselheiro, ele deve buscar se integrar a alguma entidade, que possa pleitear uma vaga. Ao longo do que chamamos de etapa de consolidação, a partir de 2005, acreditamos que novos mecanismos de participação individual possam ser implantados como, por exemplo, as urnas utilizadas na última Conferência Municipal de Recife, nas quais o cidadão podia depositar suas solicitações, um mecanismo simples, mas de alta repercussão.

Como tem sido a atuação da mídia no sentido de fortalecer a participação popular e o controle social?

Moreira: No caso da grande mídia, a contribuição é muito pequena, principalmente se considerarmos seu potencial e a quantidade de recursos disponíveis. O Canal Saúde consegue romper esta barreira, mesmo assim sendo restrito às TVs públicas e alguns canais a cabo. Os meios de comunicação, principalmente a televisão, têm muita capacidade de produzir informações essenciais para a melhoria da sociedade por conta da sua capilaridade . Infelizmente, os interesses comerciais acabam sobrepujando de longe os interesses públicos, os interesses sociais. A TV pública que o governo federal está criando parece ser um espaço muito interessante e que pode trazer grandes contribuições. Contudo, considero que as mídias alternativas, aquelas que querem achar o seu próprio caminho, são as que trazem mais oportunidades, pois há um espaço novo a ser explorado e, neste espaço, a internet parece ser um campo bastante promissor.

Mas ela ainda não seria uma mídia elitista?

Moreira: Ainda é, mas, mesmo no Brasil, o número de pessoas com acesso à rede cresce exponencialmente, além de também ter ocorrido uma sensível aumento na venda de microcomputadores nos últimos anos. O acesso à rede no trabalho e nas lan houses também vem crescendo. Na eleição de 2006, por exemplo, a internet foi considerada fundamental para uma contraposição à posição política encampada pela grande mídia. Hoje, a TV ainda é a mídia predominante, mas a convergência TV-internet já está chegando ao mercado e, numa sociedade capitalista, quando o mercado decide, tudo fica muito rápido. As mídias alternativas terão que atuar nesta decisão do mercado e crescerem por seus próprios caminhos. E, diga-se, muitas têm feito isto com sucesso.

Como a pesquisa lida com isto e com a questão da inovação tecnológica? O que é o ParticipaNet SUS?

Moreira: A pesquisa aposta nas novas mídias e na idéia de inovação tecnológica, desde que elas também representem uma inovação metodológica capaz de facilitar o trabalho do pesquisador e a disseminação de seus resultados. Nossa proposta inclui o desenvolvimento de uma estrutura virtual de trabalho e pesquisa (EVTP) – o ParticipaNet SUS – um site que torna público: um banco de dados com cerca de 40 variáveis que podem ser cruzadas de acordo com a necessidade dos interessados; análises feitas pelo grupo; e recursos que ajudem acadêmicos, estudantes, gestores e cidadãos a entender o que são os conselhos e o que é controle social, a levantar informações para melhorar sua vida e também a disseminar uma nova cultura. Atualmente, está disponível na internet uma versão preliminar da ferramenta, a ser substituída, até agosto, pela versão definitiva.

Para concluir, qual o papel da Ensp nesse processo?

Moreira: A Ensp sempre teve uma atuação voltada para o apoio aos Conselhos, basta evocar o nome de Sergio Arouca. Além disso, o primeiro estudo de âmbito nacional sobre o tema, realizado em 1994/95, foi coordenado pelo atual diretor da Escola, Antônio Ivo de Carvalho, e até hoje é uma referência. Ao longo dos anos, vários pesquisadores como Sarah Escorel, Eliana Labra, Victor Valla, Eduardo Stotz e outros tão importante quanto, vêm contribuindo com sua expertise no desenvolvimento de pesquisas e de ações práticas que, como a nossa, produzem informações e evidências capazes de subsidiar o estabelecimento de políticas públicas e de orientar a ação dos gestores para a solução dos problemas identificados. A Escola já produziu cursos de capacitação e também tem condições de produzir instrumentos para a educação permanente dos conselheiros, além de sua diretriz de estabelecer cooperação técnica com os Conselhos Pelo apoio que temos recebido, percebemos que esta atuação ainda pode aumentar, aprimorar-se e contribuir ainda mais para os Conselhos.

Fonte: Agência Fiocruz

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