Fernanda Marques
Crianças e adolescentes que sofrem abusos e negligências; maridos que batem nas esposas; idosos e portadores de deficiências maltratados: estes são alguns exemplos de violência praticada dentro das famílias, um problema que atinge parcelas cada vez maiores da população brasileira e constitui um desafio para os serviços de saúde. No entanto, nas universidades do país, os profissionais de saúde não recebem formação adequada para o enfrentamento da violência intrafamiliar. É o que revela um trabalho coordenado pela equipe do Centro Latino-americano de Estudos de Violência e Saúde (Claves) da Fiocruz.
Nos cursos de medicina, apenas 23% das disciplinas abordam a violência (Foto: Parlamento Europeu)
“O tema ainda é pouco discutido na formação dos alunos que, futuramente, atuarão como profissionais de saúde, atendendo à grande demanda de pessoas que sofrem as conseqüências da violência intrafamiliar”, conclui o relatório final do estudo, que envolveu pesquisadores das universidades federais do Mato Grosso (UFMT), do Rio de Janeiro (UFRJ), Fluminense (UFF) e a do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sob coordenação de Edinilsa Ramos de Souza, do Claves.
Cinco universidades foram alvo do estudo: três no Rio de Janeiro (uma estadual, uma federal e uma particular) e duas em Cuiabá (uma federal e uma particular). Em cada universidade foram estudados os currículos dos cursos de medicina e de enfermagem. Ao todo, a equipe de pesquisa analisou as ementas de mais de 500 disciplinas. Os resultados mostram que, nos cursos de medicina, apenas 23% das disciplinas abordam a violência ou termos correlatos. O percentual é ainda menor nos cursos de enfermagem, entre os quais somente 16,3% das disciplinas tratam dessa temática.
Além disso, a violência não consta no nome de nenhuma disciplina dos cursos estudados. “Um tema passa a constar como nome de disciplina quando já está consolidado cientificamente. A temática violência é nova como problema de saúde e não foi suficientemente divulgada entre os docentes, sendo ainda restrito o número de livros didáticos para se sugerir a alunos de graduação sobre como lidar com a violência na área da saúde”, explica o relatório. As violências contra idosos e portadores de deficiências – por serem temáticas só mais recentemente tomadas como objeto de reflexão – têm ainda menos espaço nos currículos, se comparadas às violências contra crianças, adolescentes e mulheres.
A equipe de pesquisa não só analisou as ementas dos cursos, mas também aplicou questionários aos professores que coordenavam as disciplinas nas quais o tema violência era abordado. Cerca de 70 docentes responderam às perguntas dos pesquisadores. Nas duas cidades, a grande maioria dos entrevistados reconhece a violência intrafamiliar como um problema de saúde. Porém, ainda são poucos os que discutem a temática em suas aulas: 42,1% entre os professores de medicina do Rio de Janeiro e 37,5% entre os de Cuiabá.
Perguntados se conheciam o manual Violência Intrafamiliar: Orientações para a Prática em Serviço, lançado pelo Ministério da Saúde em 2001, as respostas foram bastante divergentes. Por um lado, todos os professores de Cuiabá disseram que conheciam a publicação. Por outro, o manual era desconhecido por cerca de 80% dos docentes do Rio de Janeiro.
“Caberia investigar melhor o porquê dessa divergência. Algumas hipóteses podem ser o fato de o manual ter sido mais bem divulgado em Cuiabá que no Rio ou os docentes de Cuiabá estarem mais inseridos na atenção básica e, por isso, serem mais conhecedores desse instrumento. Uma terceira hipótese é o fato de eles realmente estarem mais engajados nas discussões em torno do tema”, diz o relatório. Outro dado que chama a atenção é que, embora todos os professores de Cuiabá conhecessem o manual, apenas 16,7% dos docentes de enfermagem usavam-no em suas disciplinas.
Apresentados à publicação do Ministério da Saúde, os professores gostaram do material, mas acreditam que ele pode melhorar. Eles sugeriram, por exemplo, a inclusão de conteúdos sobre condutas diante de ocorrências de violência intrafamiliar, o que inclui orientações sobre os protocolos de atendimento, o acompanhamento dos casos e sua notificação.
Para os docentes entrevistados, o manual sozinho é insuficiente para preparar os alunos no que diz respeito à assistência a vítimas da violência intrafamiliar. Para preencher essa lacuna existente na formação dos futuros profissionais de saúde, os professores apostam, principalmente, na capacitação do corpo docente. “Esse achado mostra que os docentes não se sentem aptos para lidar com a questão”, destaca o relatório.
A equipe de pesquisa recomenda que o trabalho de intervenção e prevenção da violência intrafamiliar seja cooperativo, intersetorial e transdisciplinar. Os pesquisadores destacam que é preciso levar em conta aspectos subjetivos na formação profissional e que inovações metodológicas se fazem necessárias no ensino da área de saúde, visando, sobretudo, a uma maior articulação entre a teoria e a prática.
Fonte: http://www.fiocruz.br
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