Muitas pessoas freqüentam hospitais para consultar- se com médicos e outros profissionais de saúde, tratar-se de alguma doença ou receber medicamentos. Pesquisadores do Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (Ipec), uma unidade da Fiocruz, encontraram uma função inovadora para o local: ser um espaço para aprender e compartilhar conhecimentos.
A iniciativa pioneira partiu da epidemiologista Claudia Teresa Vieira de Souza, chefe do Serviço de Desenvolvimento Metodológico do Departamento de Epidemiologia e Antropologia, que coordenou um grupo de estudos formado por pacientes do Ipec e seus familiares ou amigos. “Durante as consultas de saúde pública, identificamos que muitos dos pacientes do projeto de prevenção de tuberculose, que eu coordeno, haviam parado de estudar no Ensino Fundamental ou Médio”, conta Claudia. “A maioria deles manifestava interesse em aprender novos conteúdos, mas também falava sobre a falta de oportunidade”. A pesquisadora idealizou, então, uma espécie de curso sobre doenças infecciosas e parasitárias, com noções de biologia, epidemiologia e técnicas de prevenção, batizado Grupo de Estudo em Epidemiologia e Prevenção de Doenças Infecciosas e Parasitárias.
O estudo piloto consistiu em oito encontros com quatro horas duração, duas vezes por semana. As aulas foram ministradas por pesquisadores do Ipec e alunos do Programa de Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), outra unidade da Fiocruz, onde Claudia é docente.
Após a exposição teórica, os alunos participavam, a cada aula, de uma dinâmica de grupo para avaliar os conteúdos assimilados. Além da exibição de figuras e slides explicativos, outras estratégias pedagógicas utilizadas pela equipe incluíram jogos educativos, observação de lâminas no microscópio, exposição de caixa de vetores transmissores de doenças, acesso a dados epidemiológicos na internet e manipulação de peças anatômicas (cadavéricas).
Os participantes realizaram, ainda, um passeio pelo campus da Fiocruz, com visita ao Parque da Ciência e ao Espaço Biodescoberta, entre outros. “Quando escolhemos o conteúdo das reuniões, nos preocupamos em não manter nosso foco apenas em tuberculose e Aids, principais doenças enfrentadas pelos nossos pacientes”, ressalta a enfermeira Aline Neves Camera, parceira de Claudia no projeto. “Tratamos desses assuntos, mas não demos ênfase somente a eles porque já são muito vivenciados pelos participantes do estudo”.
As últimas aulas trataram de temas como automedicação, correta higienização das mãos e medidas de segurança a serem tomadas em hospitais por parte de pacientes e visitantes. Ao final do curso, os integrantes receberam certificado de participação e apostila com os conteúdos abordados, incluindo indicações de livros e sites onde podem ser encontradas mais informações sobre cada tema.
Conhecimento direcionado ao auto-cuidado
Clientes do projeto de prevenção de tuberculose do Ipec foram os primeiros pacientes incluídos no grupo. Cada um deles pôde convidar um familiar ou amigo para participar, decisão que surgiu a partir de entrevistas realizadas com os pacientes antes da formação do grupo: muitos manifestavam a importância de as pessoas próximas conhecerem melhor as doenças enfrentadas, a fim de evitar preconceitos.
Ao todo, o estudo piloto contou com 15 participantes. “Um dos nossos objetivos foi desmistificar a idéia de que somente profissionais da saúde podem entender e trabalhar na prevenção das doenças infecciosas e parasitárias”, explica a pesquisadora. “Consideramos a saúde como processo histórico e social e queremos abrir espaços para o diálogo com o saber popular, estimulando a participação da sociedade. A idéia é que os próprios ex-participantes se tornem agentes multiplicadores”.
O trabalho começou a dar frutos ainda durante sua execução. “Um dos participantes nos convidou a realizar palestra sobre dengue na Associação dos Moradores de Nova Iguaçu, usando os materiais didáticos preparados para o grupo de estudos”, conta Claudia. Ainda por meio dos contatos de participantes, os pesquisadores foram convidados a realizar cursos em ONGs relacionadas à HIV/Aids em Marechal Hermes.
Segundo a coordenadora, oferecer oportunidade de acesso ao conhecimento científico em relação à prevenção e ao tratamento de doenças cria, nos pacientes, a consciência da importância dos cuidados com a própria saúde. “Esses saberes, se aprendidos de forma significativa, podem estimular o autocuidado, reforçar a auto-estima das pessoas e ajudar a reduzir o número de casos destas doenças infecciosas,” afirma.
Os temas tratados em aula pretendem, por exemplo, contribuir para a redução do risco de cruzamento de infecções no ambiente hospitalar. “Essa iniciativa é importante porque infecções adquiridas em comunidades e hospitais vêm sendo um grande encargo financeiro para a saúde pública, já que o tratamento dessas infecções tem se tornado cada vez mais difícil com o surgimento de microrganismos multiresistentes”, ressalta a enfermeira Sonia Maria Ferraz Medeiros Neves, doutoranda do IOC e membro da Comissão de Prevenção e Controle de Infecção Hospitalar do Ipec.
Experiência enriquecedora também para os pesquisadores
Ao lidar com um grupo bastante heterogêneo – os participantes tinham diferentes idades, profissões e níveis de escolaridade –, uma das maiores preocupações de Claudia era criar um clima de compartilhamento de saberes, em que todos os integrantes se vissem no mesmo nível, inclusive em relação aos pós-graduandos que preparavam as palestras e dinâmicas. “Queríamos evitar a relação aluno-professor”, justifica.
Na elaboração dos encontros, a equipe esteve aberta às necessidades dos participantes, com programa flexível para se adaptar às peculiaridades do grupo. “Muitas vezes os professores vêm com um ‘pacote’ pronto do que pensam serem os interesses dos alunos”, alerta a bióloga Valéria Trajano, doutoranda responsável por parte das discussões sobre microbiologia. “Na prática, vimos que o diálogo é muito importante para compreender as reais necessidades de cada turma”.
Além disso, a bióloga Lúcia Maria Ballester Gil, mestranda na época do estudo piloto, aponta que os pacientes têm muito a contribuir no que diz respeito ao conhecimento do processo saúde/doença. “Aprendi muito mais do que esperava, foi uma das experiências mais importantes da minha vida profissional”, conclui.
Já para o médico e doutorando Marco Aurélio de Azambuja Montes, que contribuiu com aula sobre noções de anatomia humana, uma das características mais edificantes do trabalho foi “poder trabalhar fora do ensino formal e estimular a formação de agentes multiplicadores, que farão com que as informações e conceitos científicos cheguem às comunidades que mais precisam com a linguagem mais apropriada”.
O trabalho sobre o grupo de estudos já foi publicado em eventos sobre educação em ciências e saúde e acaba de ser aprovado para apresentação no 43º Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, que ocorreu em março, em Campos do Jordão.Animada com os bons resultados do estudo piloto, a equipe pretende criar novos grupos, um por semestre, com 20 participantes cada, além de expandir a oportunidade a outros pacientes do Ipec.
Atualmente, está em negociação com editora a publicação da apostila usada no grupo, que poderá ser aproveitada como material didático para pessoas que trabalham com educação em saúde.
Nas palavras dos participantes do primeiro grupo de estudo...
“Esclareci várias dúvidas, era como se eu estivesse em casa, conversando com amigos. Depois de aprender tanto, tomo muito mais cuidado com a contaminação dos produtos que consumo. Agora, para eu comer alguma coisa, tenho que limpar muito bem, colocar de molho... Valeu a pena saber”. (L.M.B.,vendedora, 50 anos, paciente do Ipec desde 1993)
“Esses encontros me enriqueceram em muitas coisas, como aprender a lavar as mãos corretamente. Para mim, lavar as mãos era coisa simples. Depois da dinâmica que fizemos, vi a quantidade de micróbios que ainda podiam me contaminar. Agora já aprendi a lavar as mãos muito bem. Aprendi a me proteger das doenças infecto-parasitárias cuidando também das roupas e, principalmente, da alimentação. Até a minha casa ficou diferente”. (M.J.C., do lar, 61 anos, irmã de paciente do Ipec)
“Estou sempre cobrando o próximo curso, porque também sou um agente multiplicador e quero encaminhar algumas pessoas da ONG em que trabalho. Quando você aprende informação tão rica quanto o conteúdo desse curso, sua vida muda, você passa a contribuir mais enquanto cidadão. Muitas pessoas abandonam tratamentos por falta de informação e auto-estima, não adianta só dar os remédios. Informação nunca é demais”. (E.B., escriturário, 45 anos, paciente do Ipec desde 1994)
“O grande problema que enfrentamos hoje é a falta de informação. Esse trabalho devia ser levado a colégios públicos, centros comunitários, hospitais. Eu, por exemplo, aprendi muitas coisas sobre dengue e já coloquei em prática alertando um amigo sobre a água que se acumula em plantas no seu sítio e favorece a multiplicação de mosquitos. Nada melhor do que esse contato direto”. (A.G.S., 36 anos, paciente do Ipec desde 1995)
“O curso foi de altíssimo nível e para mim foi muito importante, porque eu também sou da área da saúde e trabalho com portadores de HIV. Ampliou meus horizontes, principalmente por causa do vínculo que se formou entre os participantes e a equipe. É importante levar para as outras pessoas essa humanização”. (J.L., técnica de enfermagem, 41 anos, amiga de paciente do Ipec)
Autora: Catarina Chagas
Fonte: Fiocruz
Retirado do site: http://www.enfermagemvirtual.com.br
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